O LADRAR DO MERDOCK

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Não se assustem com o ladrar do Merdock.
Ele só embirra com polícias, guardas fiscais,
guardas republicanos e outras fardas!...



quarta-feira, 2 de abril de 2008

A MULHER DAS BANANAS

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A minha rua sempre foi um palco por onde desfilavam todos os eventos – procissões, bandas, estudantinas, as mascarinhas pelo Carnaval, paradas militares a caminho do treino na carreira de tiro, enterros e casamentos a pé…

Também por ela deambulavam as figuras problemáticas da época – o Cuco, o Zézinho dos cães, o menino Xico, o Toquim…e a mulher das bananas.

Morei sempre na mesma rua no número 27, que mudou de nome várias vezes. Era conhecida, no antigamente, pela rua do Peixe Frito, por ter imensas tabernas e o ar difundir cheiro a fritos. A rua afunilava na direcção da doca, não permitindo o escoamento odorífero. Mais tarde, alargaram-na, quando construíram o Hotel Faro e a característica que lhe dava o nome desapareceu com o decorrer dos anos. Mudou para rua Baleizão, a seguir rua A e por fim rua Dtº Oliveira Salazar. Após o 25 de Abril, passou a rua 1º de Maio.

A mulher das bananas fazia lembrar uma personagem de filme de terror…

Era de estatura baixa, para o forte. Pernas curtas, arcadas e cabeludas, pés grandes calçando chinelos sempre descambados, arrastando-os pela calçada num chap…chap ruidoso e inestético. Andava de perna aberta o tronco todo inclinado com o peso da enorme cesta de verga oval e com asa larga.

Um braço enfiado na asa da cesta o outro à cintura procurando o equilíbrio. Bamboleava-se ao andar, com os peitos volumosos, moles, pendurados num tic-tac descompassado. De vez em quando parava para descansar. Então, punha a cesta no chão e ficava de pé, com as pernas abertas, olhando para todos os lados, espreitando os passantes na esperança da venda.

O produto dela era pouco vendável, por isso pouco rentável. As bananas eram pequeníssimas, de casca preta, moles, com aspecto que conduzia ao fracasso de venda.

A procurar hipótese de negócio, juntava às bananas amendoins a que chamava ervilhanas ou alcagoitas. Para a venda delas tinha uma medida e o preço correspondia à quantidade solicitada pelo comprador.

Passava todos os dias, de manhã e à tarde, na minha rua ou a meio dela ou no passeio da frente. Era aí que ela parava. Punha a cesta no chão, abria as pernas, punha a mão em concha perto da boca, para elevar a voz, e berrava o mais que podia com sons estridentes, mais parecendo uma sirene.

Éééééésóoooo… cinco tostões… “cadbanana”…

Ervilhana “terrada”…

Repetia o pregão, eriçando ainda mais, o farto bigode que lhe ornamentava o beiço. Descansava e lá seguia caminho.

No seu andar baloiçante, todo o corpo tremia, tapado com uma bata larga, suja e rota. Arfava de cansaço, bufava de raiva e… ai de quem se metesse com ela.

A garotada adorava provocá-la. Bastava gritar-lhe:

- Oi, ti Maria, tem bananas?

Então, a ti Maria, pousava a cesta e daquela boca disforme e desdentada, saiam todos os nomes, de enfiada, numa ladainha de revolta. Sacava de um pau que escondia entre os produtos de venda e corria de um lado para o outro praguejando, enquanto os moçoilos fugiam rindo do espectáculo.

Quando, cansada, parava para respirar, espetava a cabeça coberta de cabelos imundos, lisos e compridos, sem cor definida, de olhos vesgos fixos no além.

Os sons guturais iam abrandando e por fim, lá pegava na cesta e seguia, resmungando, para outras bandas. Mas, ela fixava quem a provocava e, às vezes, vingava-se acertando uma paulada num provocador descuidado.

Não sei qual o fim da Maria das bananas.

Um dia … nunca mais voltou.

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LINA VEDES

(escrito em Junho de 2007, relatando acontecimentos de1945 a 1956)

10 comentários:

C Valente disse...

Viver um pouco o passado no presente
Saudações amigas, desculpe o atraso em contactar mas tenho tido problemas com ligações, uns dizem que é do PC outros do operador, a verdade é que fico sem possibilidades de contactar com os amigos

Teté disse...

Pois é, as crianças de todas as eras sempre foram de se meter com quem lhes parece diferente...

Dos pregões lembro-me do "quem quer figos, quem quer aaaaalmoçar?", dos dos gelados nas praias "é frutó choclate!", do "há sardinha linda!" (que curiosamente as peixeiras das praças continuam a empregar, de vez em quando) e, claro, do som da gaita do funileiro...

Enfim, gostei de ler, até pelo evocar de outros tempos!

Jinhos a ambos!

peciscas disse...

Saboroso naco de prosa.
Que, curiosamente me fez lembrar o Ti Mariano, dos meus tempos de Évora.
Ele vinha ao fim do dia, vender tremoços, ervilhana, padinhas.
Ainda um destes dias vou escrever sobre esta personagem.
Graças a est post que me fez despertar memórias.

greentea disse...

conheço o termo "alcagoitas" pois a minha mãe era algarvia...
lembro-me bem de figuras semelhantes à da mulher das bananas, que passavam ao longo de toda a manhã vendendo vários produtos e entoando seus pregões, na rua da minha Avó, em Lisboa.
Tudo se vendia , porta a porta sem necessidade de romaria ao hipermercado para fazer compras, economizando-se no papel e no saco de plástico (q não existia) pois o produto ia logo para uma cesta ou alguidar...

Alberto Oliveira disse...

... também ainda sou do tempo de alguns pregões lisboetas. Dessas figuras ainda há uma que resiste, não apregoando mas tocando uma gaita de beiços (como se popularizou a harmónica vocal). É o "amola tesouras e navalhas", facas, canivetes e conserta chapéus de chuva, sendo a sua bicicleta uma autêntica oficina ambulante. Dizem que a sua aparição traz a chuva.

bom fim-de-semana.

Je Vois La Vie en Vert disse...

Não conheci este tempo mas está tudo tão bem retratado ! Com os filmes e histórias contadas, vou aprendendo as tradições, pregões e outros hábitos de Portugal.
Ainda oiço de vez em quando o som da gaita do funileiro . Da próxima vez, vou ter com ele para viver mais um pouco estas tradições.
Beijinhos verdinhos

Gata Verde disse...

Que saudades dos pregões nacionais!!!

Ju disse...

que beleza é a existência de palavras tão bem escritas como as suas para poder eternizar pessoas como a mulher das bananas...
beijos!

Lusófona disse...

Olá Vieira!!

Gostei muito do texto, achei-o muito bem retratado, mas estranhei a palavrinnha "oi", não é comum os portugueses a usarem ou dizerem.

Beijos e dias felizes

vieira calado disse...

Ju, o texto não é meu!
A postagem, sim.
O texto é da Lina Vedes.
O seu a seu dono...

Merdock era um cão singular
e deu origem, em Faro,
a uma extraordinária
manifestação de solidariedade
que culminou na sua libertação.
Aqui se relembram
os factos e as personagens
envolvidas.
Veja também o meu blog de poesia