O LADRAR DO MERDOCK

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(em cima)


Não se assustem com o ladrar do Merdock.
Ele só embirra com polícias, guardas fiscais,
guardas republicanos e outras fardas!...



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

PEDAGOGIA

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Uma Professora de Liceu (anos 50)
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Como veio esta professora solteirona e já velha, parar ao Liceu Nacional de Faro?!
Apareceu, ficou efectiva e atribuíram-lhe o 2º ciclo das turmas femininas, com duas disciplinas – Francês e Português.
A entrada na sala de aula, no dia de estreia, avivou logo o nosso espírito crítico, mais instintivo que científico.
Após o 2º toque, enfiou pela sala, toda desengonçada, de perna aberta, parecendo mancar, apressada em direcção à secretária. Ao subir o estrado, quase tropeçou, e todo o tronco volumoso, estremeceu.
O peito e barriga formavam um bloco, sem cintura, mais parecendo uma montanha dividida pelo cós da saia.
A roupa usada revelava, pouca preocupação com o visual, cores discordantes, corte feito em casa, mais parecendo um “espantalho” vestido. Trazia uma malinha de mão com asa curta, e conforme andava a mala baloiçava para cá e para lá, ao ritmo da dona.
Não se sentou, jogou-se para a cadeira, arfando pelo esforço realizado.
Após um espaço, relativamente curto, que nos proporcionou uma observação mais atenta, diz:
- Sumário: Apresentação.
Saca da mala, abre-a, coloca-a em cima da secretária, pega no livro de ponto, tira dois pares de óculos, põe uns e começa a escrever… Acabada a tarefa, tira os óculos, coloca outros, levanta-se, apresenta-se e esclarece-nos sobre o programa de Francês.
Para ser simpática, convida-nos a dizer nomes portugueses, que ela diria, em francês. Surgiram imensos, como lápis, cabeça, caderno… até que, a Celma, a mais pequenita da sala, que vinha diariamente de Olhão, se levanta e diz:
- A propósito, como se diz pescoço em francês?
Foi como um raio a cair na sala de aula.
A professora dá um salto, toda trémula, agarra-se à Celma, aperta-a, sacode-a e grita desesperada, lançando chuveiro de cuspo para todos os lados:
- Vejam lá a maldade que está contida neste corpinho. Grande malandra, não tens vergonha?
Fez-se silêncio, toda a sala parada, a observar…
A aluna visada, branca como a cal…
Finalmente, a professora larga-a, vai para a secretária e senta-se com os braços caídos, ao longo do corpo.
Ficámos na expectativa e observantes!!!!!!!!!!
A cara, nada tinha de harmonioso, a boca enorme, de lábios finos, ao abri-la, mostrava toda a dentadura rala e saída para a frente. O queixo pegava com o pescoço, formando um papo que caía sobre peito, agora vermelho de excitação, revelando grandes veias azuis. Os olhos claros, que até deveriam ter sido bonitos, acumulavam, à volta, rugas da idade. A barba e o bigode, com aspecto descuidado por falta de esmero na depilação, mostravam pêlos soltos, uns grandes e outros pequenos, espetados. O cabelo, com pintura e permanente de caracóis pequeninos, feitos há algum tempo, apresentava-se encrespado e russo.
Tirámos, de imediato, o perfil de professora que nos tinha caído em sorte.
Daí em diante, não lhe demos mais tréguas. Aos poucos, fomos ganhando espaço, dominando a situação, abusando da sua fragilidade, numa caricatura, construída sobre o exagero das exigências comportamentais, das outras aulas.
Pobre dela, que sofreu situações incríveis, nas mãos de adolescentes insensíveis aos sentimentos, que viviam unicamente, à procura de diversão e protagonismo.
O ritmo de trabalho da professora, durante o tempo lectivo, era sempre o mesmo. Chegar, escrever no livro de ponto o sumário, verificar as faltas, dar matéria e fazer chamadas.
Escrevia no quadro a matéria dada, para nós copiarmos no caderno diário e a seguir iniciava, com o interrogatório, a duas ou três alunas, colocando-as, à sua volta, junto da secretária.
Este esquema facilitava as nossas brincadeiras. Enquanto a professora escrevia no quadro, valia tudo, desde jogar à batalha naval, às 5 pedrinhas (feitas com saquinhos cheios de arroz), a ir junto da secretária molhar a caneta (não existiam esferográficas), num desfile contínuo com roupas trocadas, sapatos ao contrário, passos de dança…
No tempo atribuído às chamadas, as “sacrificadas”, junto da professora, isolavam-na, por completo, do resto da turma.
Quando, o barulho ultrapassava, todos os limites, ela afastava as alunas, dava uma espreitadela, fazia-se um pouco de silêncio, e tudo regressava ao mesmo.
Pouco se aprendia nestas aulas e os interrogatórios levavam, aos chamados “esticanços”.
As alunas postas à prova, tanto a francês como português, levavam o livro, liam um pouco do texto, sujeitavam-se a perguntas de interpretação e a questões gramaticais.
Havia sempre, duas ou três colegas, que dominavam as matérias e se posicionavam, nas carteiras da frente, “bufando” as respostas. Como a professora era surda, não se apercebia, ou não se preocupava, porque a avaliação não era baseada nos conhecimentos, mas sim no comportamento.
Aluna considerada por ela, irrequieta, faladora ou abusadora, não tinha salvação. A classificação variava do Muito bom, Bom, Suficiente, Sofrível, Medíocre ao Mau e assim se recebiam as notas, consoante o grau de simpatia.
Todas as semanas tínhamos exercícios escritos e todos eles vinham com classificação idêntica.
Cheguei a entregar um exercício meu, com o nome da melhor aluna, no cabeçalho, e ser classificado com Bom. Ao verificar o engano, no acto da entrega, riscar e escrever, o fatídico Mau.
Uma outra vez, uma amiga de Bom, passou-me as perguntas, que copiei na íntegra. Como resultado final, surgiu Mau no meu e Bom no dela.
O barulho e desorganização, ultrapassavam os limites. Num dia de desorientação, levanta-se, coloca-se no meio do estrado, de pernas abertas, braços no ar e grita completamente perdida:
- Estou farta de fazer chô… chô…chô… e vocês não se calam!!!!!!!!!!!!!
Foi uma risada colectiva, sem fim. Nunca mais caiu em repetir, tal desabafo!
Lina Vedes – 18 de Fevereiro de 2008
Nota: - CARICATURA do PASSADO – professor de “poder absoluto”
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Para um futuro de qualidade, há 4 componentes essenciais.
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PAIS
– responsáveis, que transmitam aos filhos princípios de valores humanos, vontade de lutar e vencer na vida e que respeitem e dignifiquem os educadores (socialização e humanização)
PROFESSORES – empenhados, dignificados, justos, respeitados, trabalhando com alegria
ALUNOS – acima de tudo interessados e conscientes do papel da ESCOLA na sua formação integral
EDIFÍCIO escolar – com condições, organizado e atractivo

Para que a escola seja o nosso Futuro, tem de haver uma plataforma de entendimento baseada na cedência construtiva, desligada de interesses pessoais ou partidários (com o Ministério).
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Lina Vedes 

4 comentários:

Valquíria Calado disse...

A vontade lateja no peito, o dever social de ensinar, de ser util na sociedade, grita no interior dos que querem um novo mundo, onde a cultura liberta das condições sociais inferiores e miseráveis. Ainda jorra deste peito manancial de libertação.
Abraços caríssimo professor.Eu gostaria muito de te-lo tido como meu mestre.

Je Vois La Vie en Vert disse...

caro amigo sportinguista,

Graças a ti, agora, conheço os truques todos dos alunos portugueses !
Só espero que os meus alunos nunca vão fazer uma descrição de mim como aquela !
Mas não temo, sabes porquê ? É que os meus alunos são todos mais velhos do que eu ! ;))
De facto, sou formadora, voluntária, numa academia sénior e sem ser "professora", ensino a minha língua materna com muito gosto já há 5 anos. Até tenho alguns alunos que voltam todos os anos, acho que gostam de mim...;))

Claro que ensino aos meus alunos como é em francês "tenho dores no pescoço"...até porque tenho mesmo 2 hérnias discais aí...no pescoço !

Beijinhos
Verdinha

Lu disse...

Adorei o texto, bem como os comentários. Condordo!

Interessante que existe escolas para os que tem dificuldades de aprendizado, mas não para os que tem dificuldade de ensinar.

Abraços!

Anónimo disse...

É muito triste falarem assim de uma senhora tão excelente, profissional, sabedora e acima de tudo amiga dos seus alunos. A professora Lina Vedes é bastante competente e, sejamos sinceros: nos dias que correm não é fácil aturar pirralhos que estão simplesmente na escola para fazer o «frete» aos papás que tudo lhes dão (isto quando vão às aulas e não vão beber e fumar ganzas para os arredores).

Como querem estes miúdos ganhar o respeito de alguém se eles próprios não se dão ao respeito?!

Queira Deus que 2% destas CRIANÇAS consigam algum dia, nem que seja por breves momentos, chegar aos calcanhares da Profª Lina, pois foi, é e sempre será uma mulher de correctos valores morais e profissionalismo (digo 2 % porque infelizmente a restante percentagem nem o ensino obrigatório irá concluir).


Lamento que existam pessoas assim.


Parabéns Profª Lina e que tudo lhe corra bem pois os tempos que passámos consigo foram os melhores e os mais educacionais, essencialmente a nível de comportamento, respeito, solidariedade pelo próximo e senso comum.

Um grande beijinho da sua aluna Ana

Merdock era um cão singular
e deu origem, em Faro,
a uma extraordinária
manifestação de solidariedade
que culminou na sua libertação.
Aqui se relembram
os factos e as personagens
envolvidas.
Veja também o meu blog de poesia