Diziam uns moços que às vezes apareciam junto ao Liceu, que o Merdock era seu conterrâneo. Segundo eles, o cachorro teria sido nascido e criado nas Campinas, filho de mãe perdigueira e pai incógnito, provavelmente rafeiro – a avaliar pelas características físicas que o filho patenteava.
Foi a progenitora quem lhe ministrou a instrução primária, as primeiras letras, por assim dizer. Extremosa mãe, como todas as mães, ensinou-o a coçar-se e a ganir, a estar sempre atento e a esquivar-se, a ronar e a latir (mais tarde, a ladrar, mas só quando fosse necessário…) e a caçar.
A tenra infância do canito foi igual à de tantos outros – sem grandes sobressaltos, nem grandes mistérios. Apenas o que a Mãe Natureza vai trazendo todos os dias, aos jovens. Conheceu os animais domésticos e os répteis, aprendeu a distinguir os insectos inócuos, dos irritantes, maçadores, e invejou os pássaros. Várias tentativas fez para alcançá-los, procurando erguer-se nos ares, até ao céu que não entendia bem, tanto alegre e fagueiro, quanto brumoso e triste.
Ainda muito novo, se viu confrontado com a fatalidade da despedida, apercebendo-se de que todos os irmãos tinham partido para outros lugares, outras vidas, outras lides.
E ficou só, com a mãe. Não percebeu porquê, mas – aventamos nós –, talvez o camponês seu patrão, desde logo tivesse visto nele o melhor sucessor para a cadela, já a caminho da irredutível velhice.
Um dia, já crescidote, aventurou-se por uma estrada por onde via seguirem carros de besta, gente montada em mulas ou burros, ou a pé, e que sempre reapareciam pelo mesmo caminho poeirento e cheio de pedras, algum tempo depois. Onde iam? E o que é que lá iam buscar, ou fazer?
Andou um bom bocado, até ver desaparecer o monte onde nascera. E embora com algum temor pelo singular percurso, que lhe trazia curiosas mudanças ao habitual dos dias, continuou a sua caminhada. Não sabia por onde ia, muito menos para onde ia. Mas havia qualquer coisa secreta que o fazia avançar, à descoberta de não sabia quê.
O fim de muito caminhar, chegou às portas da cidade.
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(continua na próxima postagem)
3 comentários:
Obrigado pela visita... agora fico curioso até à próxima postagem...
Um abraço!!!
isto promete. morde quando?
Parabéns pela espectacular visão dos
acontecimentos. Humanizar a atitude do cachorro, no "ambiente" da época,
traduz arte narrativa. Bem haja VC
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