Chegara à cidade, quase sem o saber, apenas na ânsia de desvendar um caminho novo, por onde nunca fora; e com que nunca ao menos ousara sonhar. Entrara no desconhecido. E pensou, de tudo quanto via, que talvez aí viesse a ter uma vida mais desenfastiante do que a que sabia lhe estar destinada, no monte onde nascera. A velha mãe mostrava-se cansada, seria ele a tomar o seu lugar, quando ela não prestasse para nada.
Não é que se sentisse subalternizado, ou menosprezado. Sentia-lhe ainda o mesmo afecto, de quando o despertara as primeiras realidades da vida. Mas antevia um futuro igual ao dela, sem mistério e sem glória, sempre igual, pelos dias e pelas noites.
A única coisa que sempre o transcendia em alegria e emoção, eram os dias caça. Aí sentia a plenitude da existência, uma razão forte para a vida, um inexcedível júbilo.
Mas, infelizmente, esses dias de euforia e alvoroço eram poucos, cada vez mais raros, à medida que o patrão, ele próprio, caminhava também, como a mãe, para a decrepitude.
Por isso se aventurara a ver se via como seriam outros lugares e outras gentes, porventura outras balbúrdias ainda mais avassaladoras do que os dias de caça, com a mãe e o dono, por montes e vales.
No entanto, às portas da cidade, pensou que não teria condições para ficar por ali. De resto, não conhecia ninguém e, na verdade, dos que por ali andavam, nenhum lhe prestou a mínima atenção.
Ia voltar para trás, pelo mesmo caminho por onde viera, quando, de repente, começou a ouvir qualquer coisa, uns sons que nunca tinha ouvido, vindos duma rua lateral. Instintivamente dobrou a esquina e deu com um rapaz a esfregar os beiços por uma espécie de tubo, donde pareciam sair aqueles sons. Sentiu-se maravilhado. Tudo quanto até ali ouvira, eram os assobios do vento, o estrepitar das águas pela levada que vinha do tanque, o rumorejar das árvores, o cacarejar monótono das galinhas ou de algum pintassilgo trinando no silvedo, ou nas romãzeiras.
O rapaz tocava uma música dolente, eivada de entoações profundas, com requebros de emoção e afecto. Era um fado do Carlos Ramos, muito em voga, nesses tempos:
...Não venhas tarde
...diz-me ela com carinho…
Sentiu-se quase entristecer, o coração a bater de emoção. Mas também sentia os olhos a se revigorarem de alvoroço e agitação. Como era diferente, a vida, naqueles lugares!
Foi então que o rapaz se pôs a soprar uns sons muito diferentes, joviais, prazenteiros, que lhe davam vontade de os repetir com ele, e com ele comungar da mesma alegria.
...Cantiga da rua
...nem minha nem tua
...não é de ninguém…
As dúvidas dissiparam-se-lhe.
Talvez assim, pudesse alcançar os pássaros e voar com eles, pelos céus.
Decidiu ficar.
Não é que se sentisse subalternizado, ou menosprezado. Sentia-lhe ainda o mesmo afecto, de quando o despertara as primeiras realidades da vida. Mas antevia um futuro igual ao dela, sem mistério e sem glória, sempre igual, pelos dias e pelas noites.
A única coisa que sempre o transcendia em alegria e emoção, eram os dias caça. Aí sentia a plenitude da existência, uma razão forte para a vida, um inexcedível júbilo.
Mas, infelizmente, esses dias de euforia e alvoroço eram poucos, cada vez mais raros, à medida que o patrão, ele próprio, caminhava também, como a mãe, para a decrepitude.
Por isso se aventurara a ver se via como seriam outros lugares e outras gentes, porventura outras balbúrdias ainda mais avassaladoras do que os dias de caça, com a mãe e o dono, por montes e vales.
No entanto, às portas da cidade, pensou que não teria condições para ficar por ali. De resto, não conhecia ninguém e, na verdade, dos que por ali andavam, nenhum lhe prestou a mínima atenção.
Ia voltar para trás, pelo mesmo caminho por onde viera, quando, de repente, começou a ouvir qualquer coisa, uns sons que nunca tinha ouvido, vindos duma rua lateral. Instintivamente dobrou a esquina e deu com um rapaz a esfregar os beiços por uma espécie de tubo, donde pareciam sair aqueles sons. Sentiu-se maravilhado. Tudo quanto até ali ouvira, eram os assobios do vento, o estrepitar das águas pela levada que vinha do tanque, o rumorejar das árvores, o cacarejar monótono das galinhas ou de algum pintassilgo trinando no silvedo, ou nas romãzeiras.
O rapaz tocava uma música dolente, eivada de entoações profundas, com requebros de emoção e afecto. Era um fado do Carlos Ramos, muito em voga, nesses tempos:
...Não venhas tarde
...diz-me ela com carinho…
Sentiu-se quase entristecer, o coração a bater de emoção. Mas também sentia os olhos a se revigorarem de alvoroço e agitação. Como era diferente, a vida, naqueles lugares!
Foi então que o rapaz se pôs a soprar uns sons muito diferentes, joviais, prazenteiros, que lhe davam vontade de os repetir com ele, e com ele comungar da mesma alegria.
...Cantiga da rua
...nem minha nem tua
...não é de ninguém…
As dúvidas dissiparam-se-lhe.
Talvez assim, pudesse alcançar os pássaros e voar com eles, pelos céus.
Decidiu ficar.
11 comentários:
Olá boa noite!!!
Como sempre muito interessante passar por aqui...
Uma beijoca da sonhadora e espero que tenhas um bom fim de semana
Ainda bem que Vieira Calado assumiu
esta narrativa.Pelo conhecimento dos factos e sua virtuosidade, a estória
da saga do Merdock ultrapassa a minha
expectativa inicial. Bem haja.
Realmente as histórias protagonizadas por cães têm outro interesse... ;)
agora é que a história do canito está aser narrda na sua plenitude narrativa! E torna-a mais pungente a ilustração que a acompanha decorada ao gosto floreado tão ao jeito da época em que o bicho se passeava pela avenida do liceu na capital do Algarve! Belo!
Dei hoje pela tua existência.E gostei do encontro.
Beijos
Tou a ler isto ao meu Bobi. Não deu muita atenção ao primeiro capítulo, mas agora já se senta para ouvir.
;)
As histórias aos quadradinhos são exactamente para isso; para quem custa a ler.
Não seria o caso Merdock, que fez uma instrução bem feita (ao contrário do que acontece - parece - nos dias de hoje), e mais tarde se matriculou no Liceu!
Jorge (antigo aluno)
Estou grato Vieira Calado pela sua estória sobre Merdock. Qualquer ser
vivo fica enternecido por conhecer
esta relação vivida entre jóvens e
outros seres carentes de afecto...
Obrigada pela visita ao Minha Página.
Espero que volte.
Beijos e abraços
Marta
:)
o k é k meteste na veia?
voar foi sempre o sonho do homem.
Pelos vistos, também de certos animais inteligentes
Um abraço.
João
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